Escrita De Rouxinol

Friday, December 30, 2005

O calendário que acaba daqui a umas horas

Estou a escrever sob uma ameaça premente: está um leão à minha frente, com a bocarra escancarada. Ele olha para mim com aqueles olhinhos de âmbar e adia a decisão. Ou indecisa se me decapita ou se me desmembra. Tornar-me-ei uma assombração sem pescoço nem nada para cima ou uma maneta que só vai poder escrever nos blogs com uma mão? Tem uns bigodes espessos, quase que se vê o leite com chocolate a pingar dos bigodes (isto se, tal como eu, ele bebesse leite com cola-cao ao pequeno-almoço, o que eu duvido muito).
Olhando agora com calma para aquela juba -farta!-, imagino "Que belas rastas que dava para fazer dali!". E com aquela cor, ficava um efeito mesmo fixe!

Enquanto divagava, o leão acabou por devorar a minha cabeça. Estou aqui dentro. Sim, dentro da bocarra. Se assobio, ou se canto, isto faz um eco muito bacano! Faz o mesmo efeito que há nos filmes de desenhos animados, quando são devorados e estão dentro da bocarra. É bom verificar estes aspectos científicos dos desenhos animados; eles têm tudo pensado ao pormenor. Deslizo agora pela garganta e vou ter às entranhas, que -claro!- têm o tamanho de uma sala! É muito fixe, isto aqui! É muito cor-de-rosa, mas é quentinho, está-se bem aqui, muito confortável, sim senhor! Posso saltar dum lado para o outro, fazer as minhas cabriolas todas; tenho o espaço só para mim, e isto até parece que não tem gravidade! É tal e qual um insuflável, com o bónus de não ter gravidade! Roam-se praí de inveja! Pim, pim, pim, catapiiiim, pim... Ou melhor: pluf, pluf,pluf, dagaplufffffff, pluf...

Quando reparo, estou a desintegrar-me! Ó, não! É melhor ter calma: se não custou nada até aqui, não é agora que vai doer. Deparo-me então: é evidente, se eu fui comida por um leão, o leão do calendário, se já estive na boca e estou agora algures no meio do sistema digestivo, eu estou no meio da digestão! Eu estou a ser digerida! Que fixe! Esta é a melhor missão! Melhor do que dar de comer, é ser o comer. É essa a boa-acção primordial: melhor do que dar de comer aos pobres, é dar-se a comer aos pobres. Vou ser alimento!

Desintegro-me então e sou absorvida pelo cor-de-rosa, para as veias. Aqui, conheço muitas moléculas! São todas muito simpáticas! Explicam-me como é que o sistema funciona, quais são as minhas funções, para onde é que devo ir. Logicamente, isto tudo enquanto corremos, nós somos sangue.

Durante uns tempos, até gosto disto. Mas começo a pensar no meu corpo, que ficou lá em frente ao computador (e está a escrever isto, neste momento), na Mutti e na Carol, no Gegé, na escola, na Música, em tudo, na Vó Cinda, e concluo: "Na! Isto não é para mim! Quero ir embora!". Organizo as moleculazinhas todas da minha cabeça que estão espalhadas pelo corpo do leão e decidimos: Vamos embora! Fomos então falar com o gerente lá do sítio, que se prontificou a ajudar-nos. Apresentou-nos vários planos de saída, cada um com as suas vantagens e as suas desvantagens, evidentemente. Acabámos por escolher o da sudação. Assim, tivémos que nos dirigir o mais sincrinizadamente possível para as glândulas sudoríparas e assim que fez um bocadinho mais de calor -pop!- saímos! Deixámo-nos ficar por lá, feitas vapor, procurámo-nos umas às outras. Quando ficámos finalmente juntas, ocorreu uma reacção química muito poderosa e voltámos a ser a Rouxinol, acoplada ao meu corpo, una, visível, palpável e coordenada. E -essencialmente- inteira!

O leãozinho está lá, descansadinho. Gosto muito dele, é um bacano. Vou oferecer-lhe o cabrito que estava aí no frigirífico reservado para o almoço de Ano Novo. Não faz mal. Mas quando ele acabar de comer, vou fechar o calendário. Uf!

Thursday, December 22, 2005

Manifesto

-- Antes de tudo, quero desejar a toda a gente umas boas festas! –

Queridas Concidadãs e Queridos Concidadãos:

Este novo fenómeno escandaliza-me. Onde estão as bandeiras que povoavam as varandas portuguesas? Foram substituídas por um estrangeirado da Lapónia. Um lapão. É desolante a substituição de um símbolo patrício por outro símbolo, apátrida.


Agora, há trezentos mil pais-natais por cada dez metros de rua. E as bandeiras? NEM VÊ-LAS! Aquele orgulho nacional que louvava o hino das massas e bolachas Nacional (para os menos recordados: O Que É Nacional É Bom!) foi olvidado, manifestando-se então uma admiração exacerbada por esses pastores de renas cujo maior representante é - justamente! - o Pai Natal, esse patife. Ahah, vocês julgavam todos que o Pai Natal era pai natal durante o resto do ano, ou seja, ficava de papo para o ar o resto do ano...nãaaaao: o Pai Natal trabalha. É pastor de renas. Sim, porque na Lapónia faz frio, por isso, não dá para fazer praia. Então o gajo tem que trabalhar, or else, congela. Mas congela mesmo. ( Aquela história da gordura proteger do frio é um mito urbano. Eu, por experiência própria, sei que os gordos também passam frio. Nós também congelamos.)

A minha angústia reside aqui: custa-me muito assistir ao florescimento de pais-natais (em minúsculas porque são uma mera representação, um símbolo do verdadeiro Pai Natal, que existe de facto, e está neste preciso momento -porque eu sei, e isso não é discutível- sentado a contar quantas playstations portáteis falta aviar) em detrimento das esteticamente apelativas e exponencialmente representativas da convicção nacional bandeiras.
Mas o que é que isto quer dizer?

- Que Portugal decidiu oferecer a Pátria para anexação à Suécia, país onde está integrada a Lapónia, e manifesta a sua vontade através da afixação dos pais-natais trepantes?

- Ou, dado que os habitantes dos países europeus mais desenvolvidos são, mais expressivamente, loiros, os portugueses escolheram com absoluta aleatoriedade um país nórdico e expuseram ao Mundo um símbolo desse país, para parecer que são aborígenes desse país, e a sua identidade salta assim aparentemente dum país da cauda da Europa para a cabeça? (A parte do “expressivamente loiros” cabe aqui: há cada vez mais portugueses com uma coloração alva nos cabelos. Natural ou artificialmente. Dantes, não era nada disto… Os portugueses que não são loiros põem dois pais-natais por janela.) O estranho é que todos os portugueses escolheram o mesmo país, a Suécia, e o mesmo símbolo, o Pai Natal. Não vejo ninguém com um menino mijão belga pendurado na varanda. Ou um bacalhau norueguês a fazer de candeeiro.

- Será uma manifestação de solidariedade, alguma campanha a favor daquele homenzinho com barba de sem-abrigo? Às tantas, ele já foi um grande campeão de alpinismo, mas a vida é madrasta e ele está nas ruas da amargura e precisa de dinheiro para competir com o João Garcia, ou (se o lapão for mais fraquinho) tentar subir ao Evereste. O Garcia já lá foi, e isso custou-lhe um nariz. Ah! Mas então é por isso que ele tem uma barba crescida! Mas então a história da barba vai deitar por terra a teoria da campanha de solidariedade. Já não é por aqui.

- Será que a Suécia nos quer invadir, e começa com a introdução de símbolos inofensivos? Serão assim tão inofensivos? Quem me garante que não há um dispositivo qualquer naquele estrupício que não é altamente hipnótico e por esta altura já metade da população sonha em sueco? Além disso, as colonizações/inculturações mais eficazes traduzem-se pela introdução de superficialidades, e não pela manipulação de valores mais profundos. Por exemplo, os americanos introduziram a coca-cola e coisinhas dessas no Japão muito facilmente. E agora os japoneses são americaníssimos. Mas os portugueses (sim!, nós já lá estivemos, nem sei como) tentaram introduzir o cristianismo e desvanecer a tradição japonesa. Logicamente, foram de volta. Dã. Fazendo o paralelismo, os suecos começam por introduzir o pai-natal (e a IKEA, que monopolizou o mercado do móvel e da decoração português, destronando a sempre fresca e dinâmica Moviflor), em vez de mexerem na gastronomia e no futebol, que são altos valores portugueses. Mas ainda a propósito da colonização sueca, o que é que eles querem? O que é que há cá que eles não tem, além do evidente clima e da comida? Ah, já sei: o típico carácter português. De facto, falta-lhes um bocado este feitio, insolente, orgulhoso, preguiçoso, bem-disposto e hospitaleiro. Que nos torna menos quadrados do que eles. Menos cinzentos.

- Quererá isto dizer que os portugueses querem apenas embelezar um pouco o seu património imobiliário, decorá-lo a preceito, a condizer com a quadra natalícia? Eu descarto absolutamente esta possibilidade. A tradição consistia em aumentar a conta da luz (para gastar o subsídio de Natal, e se ainda desse, o 13º mês) através da instalação de luzinhas intermitentes das mais variegadas cores nos jardins e nas varandas. E muitas vezes ainda nas janelas. O que é que aconteceu este ano? Com certeza que é alguma das hipóteses anteriores.

Há ainda um tópico que me intriga: se o Pai Natal desliza pelas chaminés abaixo, onde é que se foi buscar a ideia de o pôr a trepar pelas varandas? Alguém acha que ele era capaz de subir uma corda, feito Tarzan, com aquele peso? Eu acho que é uma tentativa de camuflagem da tal colonização sueca de que já falei antes. Lá na Lapónia, entrava-se nas casas pelas chaminés, por isso é que há essa história do Pai Natal entrar pela chaminé. Mas como Portugal é um país na cauda da Europa, está mais próximo dos países com selvas e lianas do que dos países com chaminés nas casas. Claro que isto é o que os suecos acham, porque eles não põem cá os pés antes da inculturação concluída, antes de toda a gente desistir das suas vidas e se tornar pastor de javalis (porque aqui não há renas). É evidente que Portugal tem chaminés nas casas.

Para além de nos estar a absorver, a Suécia está ainda a ganhar dinheiro (chupistas!), com a venda dos pais-natais, que custam cerca de 16 €, consoante o estabelecimento comercial onde se efectua a compra. Isto não se faz! Onde é que já se viu, um país riquíssimo a levar o dinheiro todo doutro país que não tem para onde se virar para arranjar uns trocos? Deviam ter vergonha na cara!!

E porque é que os portugueses insistem em pendurar os pais-natais nas varandas? São, pois, objectos de um mau-gosto absurdo! Avantesmas feiosas, caras de nenuco com barba e depois o resto do corpo é todo de pano, molinho, molinho. Pano horroroso, é feltro. E a corda é daquela de nylon, da mesma cor (e, possivelmente, do mesmo material) que a barba. Se alguém tivesse que trepar por cordas daquelas, ficava com as mãos todas queimadas. Os portugueses sempre foram um povo com tão bom-gosto, não percebo esta moda. Até o bigode das mulheres, se bem aparado, tinha o seu interesse.

Esta manhã, já fui pôr a minha bandeira da República Portuguesa na janela. Fui comprar mais bandeiras, e entreguei-as aos vizinhos para trocarem pelos pais-natais-sem-jeito. Além das bandeiras nas janelas da minha casa, já há outros vizinhos do prédio que repuseram as bandeiras. O problema é que mantiveram os pais-natais. Eu não percebo. Passa-se alguma coisa que eu ainda não sei? Eu não tenho visto televisão, nem lido jornais, nem tenho procurado notícias na net. Há alguma lei nova que impõe os pais-natais? Apesar de tudo, creio que o meu prédio é um oásis no marasmo sueco que povoa o país.

Acabo desta forma a minha missiva. Não espero que tenha um efeito monumental. Só espero que alerte algumas consciências. Na esperança de que se queimem os pais-natais num parcimonioso auto-de-fé. E que se restaure o orgulho nacional nas janelas. Bandeiras ao poder.

Quero ainda acrescentar que, apesar de tudo, o Pai Natal, o autêntico, é um bacano. Liguei-lhe no outro dia; está tudo bem. E a Leopoldina ainda não apareceu lá este ano (Está a ser um bocadinho ingrata, a meu ver… Arranja de graça o stock todo para o Continente e nem sequer lá põe os pés… tsc tsc…). Eu disse-lhe ainda que acho que o manager dele o anda a defraudar, com aqueles pais-natais tão feiosos, que não se parecem nada com o meu amigo… Ele disse que anda, efectivamente, com uns problemazinhos. Se alguém quiser ir trabalhar para a Lapónia (mas já se sabe que é só no Advento), que mande o currículo.