Aquele piano, para ali encostado por vários meses, finalmente viu a luz de novo.
Estava fechado no silêncio, desdentado. Sequestrado na sua estrutura de ébano lacado e cordas tensas até mais não, o piano definhava, não se atrevia a soltar um pio que fosse.
Há três meses, encomendei as pecitas que estavam avariadas, que por fim chegaram, esta semana. Ontem estive a montá-las, com calma e muito miminho, mas não me atrevi a experimentar o piano. Quis guardar a solenidade para um agradável dia de sol.
Que não tardou a chegar: hoje, cheguei-me ao piano, abri-o e sentei-me.
Finalmente, o piano soou. Fez-se a homenagem ao som e à música e ao ruído, riu-se, chorou-se, houve estremecimentos e chamadas ao passado. Como uma lagarta, o piano contorceu-se dentro do seu casulo de vários meses, inspirou e desfez-se dele. Ali, mesmo à minha frente, estava a mais bela borboleta. Abri a janela e ela voou por ali...
Debaixo daqueles raios de sol redentores e ardentes, o piano voou. Subiu até ao Sol, desceu até às flores do jardim, cheirou o cabelo de todas as ninfetas que por lá apanhavam sol, voou com os pássaros que por lá andavam a pipilar.
Ouviu-se Mozart, Chopin, Ravel, Lopes-Graça, Rachmaninov e Liszt.
Mas agora, está a ficar frio outra vez...e, não tarda, chega a noite. E ele já deve estar cansado...
Vou chamá-lo cá para dentro.
Até já.