Escrita De Rouxinol

Friday, September 23, 2005

A partitura

Suspensas naqueles cabos eléctricos que são cinco -sempre paralelos, seguros por um arabesco à esquerda-, as pintas pretas perfumam o ar. Rebolam e rebolam pelos cabos eléctricos, pululam, juntam-se na conversa, rebolam mais uma vez. Depois, muito abruptamente, a calma. Surge a falta de gravidade e elas flutuam em todas as direcções, são cometas sonhadores que com calma divergem. E agora, outra vez, uma entidade compositora agrega os cabos eléctricos e os cometas voltam a ser cachorrinhos brincalhões, que latem, rosnam e correm atrás das caudas e uns atrás dos outros. Mas!, o Sol apaga-se. A terra treme, abre-se e grandes barrigas e braços telúricos, feios, irrompem. Brotam então lava. Inundam a partitura e o ouvinte de lava. Lava quente, lava destruidora, desesperante e -todavia- fascinante. Quando já toda a Música é uma bola de fogo líquido, burila-se e tranforma-se num infinito de cometinhas que desta vez, no fim da partitura, podem fugir de vez para o vazio, para o negro, e ressoar majestosamente nas paredes do quarto.

Monday, September 19, 2005

O primeiro dia de aulas, honrando o dia de hoje

A menina pegou nas tralhas todas que precisava para o primeiro dia e enfiou-as à pressa na mochila. Atirou a trouxa para o lado e dedicou-se ao que mais gosta no princípio de cada ano: escolher o lanche que ia levar durante o ano para o intervalo de quinze minutos.
Para isto, a menina teletransportou-se para a despensa. Bolachas, bolos, biscoitos, pão, broa, folar da páscoa. Sumo, iced tea, água, iogurte, iogurte líquido. Maçã, laranja, kiwi, pêra, morango, melão, ameixa, pêssego. Manteiga, patê, tulicreme, queijo, fiambre. Havia de tudo, e ficou muito por mencionar. A miúda saltitava entre a despensa e o frigorífico a escolher o que fosse mais saboroso e menos aborrecido, para durar toooooooooodo o ano. O que ela não escolhesse, ficava para se deliciar quando chegasse a casa, depois de um longo dia de aulas.
Mas a menina não se decidiu. Quando se foi deitar, continuava a tentar decidir o que escolher.
Na manhã seguinte, sem ela saber, a mãe pôs-lhe o lanche mais delicioso que qualquer criança queria:

Friday, September 16, 2005

Eu quero pronunciar-me

Eu quero pronunciar-me sobre a burrice que grassa no ensino superior e depois do ensino superior cá em Portugal. E em Portugal, generalizando.

A minha prova de ingresso foi submetida a uma reapreciação porque foi avaliada em menos três valores (dos vinte possíveis) do que aquilo que efectivamente valia. Porque as respostas que eu dei no meu exame de Português B não eram exactamente como as da Proposta de Correcção. Isto demonstra em parte a burrice derivada da falta de flexibilidade que emprenha a classe docente.
Outro caso, que ilustra o que se passa agora no seio da discência do ensino superior: eu sou caloira, e agora no princípio do ano o Casco-Paper da praxe foi conjunto com o pessoal de Direito. No meio do Casco-Paper, estava a seguinte proposta de trabalho: "Distinga domicílio de habitação". E uma caloira de Direito (eu não estou em Direito, note-se) julgava que tinhamos que procurar um edifício que fosse um Domicílio de Habitação, distingui-lo do meio dos restantes edifícios que contornavam a rotunda. Uma aluna de Direito. É em mãos destas que vai parar a Justiça dentro de cinco anos.

E nós vemos isto a acontecer todos, todos os anos. Todos os anos são atribuídos altos cargos a gente que vem para os media dar erros de português, todos os anos os alunos são injustiçados por professores mais burros do que eles (por favor, que isto não se entenda como imodéstia minha), todos os anos vai gente presa devido à burrice dos advogados que pode (ou infelizmente, muitas vezes, não pode) contratar, e tantos milhares de situações que poderiamos todos enunciar, durante semanas, meses a fio...

Eu estou angustiada. A irresponsabilidade, a arrogância e o facilitismo estão a tornar-se valores (e quero mesmo dizer valores, no sentido de serem qualidades que se aprecia e que nos tornam pessoas melhores) na sociedade actual. Toda a gente quer parecer melhor do que os outros, ninguém tem problemas de consciência por passar à frente na fila de três horas da Segurança Social, não há compaixão, é bem tirar uma licenciatura e ter um Dr ou um Eng antes do nome, há morcões que chegam a apresentar-se como Dr. José Silva (nome meramente exemplificativo), em vez de um honesto, acessível e franco José Silva. Toda a gente quer é coçar para dentro.

Detesto esta merda desta gente. Quero ser um simples leitor de CD's, ser encostada para um canto e que ninguém me venha falar (e eu também não quero testemunhar) das vilanezas que perpassam as relações humanas actualmente. Só quero a minha música.

Wednesday, September 14, 2005

A persiana

A persiana desliza, lambe o vidro desinteressadamente, sujeita aos caprichos da criatura que agarra a fita. Fica então a luminosidade corrompida, a persiana coa a luz como o óvulo escolhe o espermatozóide. E então, e então o mais belo, o mais confiante, o vitorioso raio de luz escolhe incidir naquela bola de quartzo e explode esplendorosamente no maior espectro de cores quentes que abraçam.

Tuesday, September 13, 2005

A ventoinha

Monotonamente, a ventoinha cumpria a sua função: expirava uma aragem, sem nunca sequer pensar em inspirar.
Apesar de ter um trabalho monótono, a ventoinha sabia o quão imprescindível e venerado era o seu efeito. Sabia o quão agradecida estava a vida que beneficiava dos seus serviços.
Assim, a ventoinha era muito orgulhosa e ciosa do seu trabalho, portanto, mesmo nos momentos de maior fragilidade, em que as forças começavam a faltar, ela heroicamente batalhava e nunca deixava os outros decepcionados ou com calor.

O computador

O computador ali estava, largado, deixava-se tocar e excitar, por dedos prenhos de despudor, que exploravam e exploravam e mais uma vez exploravam a erogenia do computador.

E no princípio era o Verbo.

Não me comprometo a postar um conto por mês.
E vai ser o que deus quiser.